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  • Foto do escritorJoão Rabello

Às ordens

Atualizado: 2 de dez. de 2022

- Doutor Paiva, a temperatura do ar está agradável?


Ao ouvir a pergunta e observar o olhar assustado do jovem rapaz, o Doutor Roberto Paiva, que naquela semana completava quatro décadas à frente de uma das maiores holdings da América Latina, se deu conta de que não sabia o nome do jovem funcionário. Fez um gesto com a mão que não era propriamente gentil, mas econômico e eficiente. O tédio ao responder mais um questionamento que lhe parecia desnecessário era a razão para a falta de cuidado. O rapaz, que aliás se chamava Felipe Alvez, teria desaparecido mais rapidamente do escritório não fosse este espaço de tal dimensão que lhe exigiu longos 20 passos sonoros até encontrar a porta de saída.

Esqueça o jovem Felipe, ele não voltará a esta história. Quem entra agora na sala é um homem mais velho, que avança silenciosamente pelo amplo salão e comenta em voz suave a poucos metros do seu interlocutor:


- Doutor, todos os vice-presidentes e conselheiros já estão na sala 3 para a reunião quinzenal.


O Doutor Paiva registrou a informação, mas não esboçou reação. O homem, cujo nome não importa, retirou-se, pois havia compreendido por longa experiência que a mensagem havia sido transmitida.


O motivo do desinteresse foi que o Doutor havia fixado o olhar no relógio digital sobre sua mesa. Os números grandes, que poupavam a necessidade dos óculos, marcavam 9:23 da manhã. Este horário o lembrava 1923, o ano em que seu pai, fundador da companhia que hoje ele possui, havia nascido. Pensou que não sentia mais falta das ordens que o pai emitia quase sempre que o via. Em outros tempos, teria sentido algum aperto por não poder contar mais com o velho de uma rigidez maquinal, mas hoje o lembrava quase como uma curiosidade distante. Quando o relógio bateu 9:32, achou que seria necessário ir, enfim, para a tal reunião.


Era possível ouvir vozes por trás das enormes portas de mogno, cujo centro exibia um bem-acabado trabalho de macheteria. Assim que o assistente, que o aguardava do lado de fora, abriu a porta, a sala foi invadida por um silêncio arrebatador. Doutor Paiva entrava sem qualquer constrangimento, como se tivesse engolido todas as vogais e consoantes que há pouco rebatiam pelas paredes. Sentou-se à cabeceira, olhou para o homem que havia estado em sua sala momentos antes e, sem dizer uma palavra, comunicou que a reunião poderia começar.


- Diante da presença do Doutor Paiva...


- Se o Doutor aprovar...


- O contrato com os indianos seguiu as decisões do Doutor Paiva...


- Será que o Doutor Paiva gostaria...


O Doutor já olhava pela janela. A empresa era um corpo que se mantinha em movimento sem qualquer necessidade de sua atuação. Uma engenharia empresarial acéfala. Não se lembrava de contrato com indianos, já não tinha interesse em saber como aquela engrenagem funcionava. Estava ali colecionando olhares nervosos, ouvindo mais perguntas do que respostas e aguardando o final do dia.


Olhou o relógio do elevador antes da porta se abrir, 19:21 - dois anos antes – pensou. Subiu uma porta que o levou ao heliponto da sede da companhia. A aeronave levantava voo enquanto o Doutor observava a cidade de São Paulo como um cobertor repleto de pequenas luzes brilhantes. Naquela noite, só adormeceu após a segunda dose do Belvenie 21 anos que o aguardava sempre na biblioteca.


Na manhã seguinte, enquanto chegava à mesa do café da manhã um mamão coberto com granola, decidiu ligar para o assistente. Cancelou a vinda da aeronave, só iria para o escritório mais tarde, caso fosse.


Foi até a garagem de sua casa e, após longos passos pelo pátio central da residência, escolheu um carro prata, pequeno, quatro portas e motor 1.0. Antes de sair pelo portão da residência, deixou claro que não era para ser seguido pela escolta. Os seguranças sabiam que não adiantava insistir, em dias como aquele nada podiam fazer a não ser aguardar a volta do Doutor.


Parou na esquina logo que passou a guarita. Colocou um par de óculos de leitura e apoiou um celular sobre o suporte preso ao vidro. Ligou o aplicativo e ficou aguardando o primeiro passageiro. A corrida de 19 reais aparece no visor. Aceita e acelera na direção indicada na tela. Ao chegar no local, nota que dessa vez se trata de uma mulher que diria ter uns 50 anos.


A mulher entra no banco de trás, diz imediatamente para aumentar a temperatura do ar-condicionado e olha o celular mal notando a presença do senhor ao volante. Ele atende prontamente sem esquecer um “perfeitamente, senhora”. Perguntou ainda se a senhora gostaria que ele ligasse em alguma rádio.


- Não precisa – disse séria.


O Doutor Paiva especulou que ela estivesse um pouco atrasada ou ansiosa, sabia apenas que seu nome era Rosane e que deveria deixá-la numa agência do Banco do Brasil indicada no mapa.


- Não pega a ponte, moço, não gosto de passar pela ponte.


Ele assentiu complementando com um sorriso e “sim, senhora”.


Ao sair, ela bateu a porta sem se despedir. Ele pôs o carro em direção à sua residência considerando que fora uma boa viagem, apesar da pouca quantidade de ordens. Ao aguardar o sinal abrir, teve tempo de enviar a ordem para trazer a aeronave.

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