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  • Foto do escritorJoão Rabello

Máquina de Saudade

Ele nunca esqueceu a cor daquela terra. Diversos tons de amarelo se misturavam a tons de laranja, vermelho e marrom. Quem via de longe, passando de carro pela estrada, podia achar que era uma cor só. Ele, contudo, atento com seu olhar de menino, gostava de caminhar olhando para o chão e conhecia todos as variações daqueles caminhos de terra batida. Encontrava-se em sua própria imaginação, como se sobrevoasse por entre os detalhes do chão enquanto confiava a sua mão pequenina na mão segura de sua mãe. Aquela mão o levava para todo lugar e era a coisa mais firme que jamais tinha conhecido.


Naquela manhã, o sol já havia esquentado a terra batida. Nos céus, algumas nuvens solitárias não ameaçavam o imenso azul. Na terra, tudo o que o menino já conhecia: grilo, cigarra, formiga, milho, amarelo, laranja, vermelho, marrom.


A pernas finas por entre joelhos redondos tinham que trabalhar para manter o passo da mãe, mas isso não o impedia de se imaginar um gigante pisando entre o barro ainda úmido ou a terra já seca, as formigas corriam quando sentiam a sola do seu chinelo tremer o chão.


Nesse dia não foi diferente de todos os dias em que a mãe o levava para a escola no tanto de caminhada até a cidade vizinha, exceto pelo único momento em que o menino tirou os olhos do chão. Foi logo após um ronco surgir no céu. A princípio, o menino não viu nada. Apenas achou que o céu estaria adormecendo – se o céu roncasse, seria daquele jeito - pensou. Logo percebeu que alguém tão azul não poderia simplesmente adormecer, era preciso ir fechando os olhos aos poucos, ficando dourado, azul escuro e finalmente com os olhos cerrados cheios de estrelas. Olhou novamente o céu acordado e foi quando viu uma pequena cruz atravessando uma das poucas nuvens. Não era pássaro, pois pássaro não tem tanta pressa. Achou melhor perguntar:


- Minha mãe, o que é aquilo?

- É um avião, filho.

- E pra que serve, mãe?

- Pra levar as pessoas pra bem longe.

- O pai foi num daqueles, mãe?

- O pai foi no chão, filho.

- Mas o pai foi pra longe.

- No chão também se chega longe, mas demora mais.

- Então o avião é pra quem tem pressa de distância?

- É sim, filho.


O pai foi sem pressa – pensou e abriu um sorriso que a mãe não reparou.


Continuaram em silêncio por muitos minutos. Em algum momento então veio a escola, depois a vida, o tempo, a barba, a força, a carteira, o emprego, a mulher, o filho, só o pai não veio mais.


Cinco décadas se passaram até que Justino finalmente entrasse numa daquelas cruzes que cortam as nuvens. Estranhou todas as cadeiras enfileiradas como num cinema sem tela, procurou por letra, número, assento. Sentou-se junto à janela. Lá do alto, o céu continuava grande e a terra de sua vila, hoje uma cidade, parecia mesmo ser de uma cor só. Lembrou-se daquela manhã, da primeira vez que ouviu o céu roncar.


Assustou-se quando, no alto-falante, uma voz abafada anunciava que em poucos minutos estariam em São Paulo.

Olhou as mãos densas, pesadas e não podia acreditar que já era avô. Não esperava a hora de abraçar o filho que não via desde o Natal e conhecer a neta que tinha poucos dias de vida.

Até aquele momento, pensava que todo ronco que soava pelo céu era uma máquina de carregar saudades por entre as nuvens. Apenas hoje, perto dos seus 60 anos, é que percebeu que aquela mesma máquina - que levava distância pra quem tinha pressa de distância - era capaz de matar saudade para quem tinha saudade.

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