A bola vinha caindo de um lançamento longo e já estava quase na altura da barriga. Um craque teria feito o mais simples, um passo para trás e matava a bola na coxa. Não levaria mais do que uma fração de segundo e estaria pronto para a próxima jogada.
Niltão não era nem craque e nem afim de soluções simples, por isso deu um passo à frente, o que o obrigou a envergar o corpo para trás, como se faz em quadrilhas de festa junina, para então matar a bola no peito.
A bola bateu em cheio sob um estampido grave e subiu mais de um metro. A cena tinha plasticidade, apesar de pouco prática. O corpo envergado como um “U” deitado, a bola lá no alto que, eventualmente, veio pousar no chão de terra batida. Os marcadores adversários tiveram tempo de sobra para se aproximar do meio-campista e tirar-lhe a bola assim que ela tocasse o chão, mas permaneceram hipnotizados pela cena.
Niltão finalmente ajeitou a bola com a perna direita, levantou a cabeça com um olhar só encontrado em filmes de faroeste e fez um lançamento que, já esperado por todos, saiu pela lateral. O ponta-esquerda aplaudiu, não se sabe a belíssima performance para matar a bola ou a tentativa de lançá-lo ao ataque.
Ao fim do jogo, alguns colegas passaram por Niltão dizendo “bom jogo”, “bela matada”. Os elogios foram recebidos com o devido orgulho.
Colocar a bola dentro de uma baliza não significava nada para ele - isso qualquer um faria mais cedo ou mais tarde. O que Niltão almejava era a plasticidade fotográfica do caderno de esportes, os jogadores profissionais que pareciam flutuar no momento da cabeçada. Não esqueceu quando viu pela primeira vez a foto em preto e branco de Pelé no ar em meio a uma bicicleta. Para Niltão, uma imagem que vale por mil gols.
Após o jogo, ele recusou a ida ao bar. Alguns companheiros de time notaram o ar pensativo, o olhar como se estivesse prestes a lançar um ponta ao ataque. Ninguém comentou nada, uma matada daquelas requer a cabeça no lugar, eles diriam.
O telejornal não havia terminado quando Niltão entrou em casa, o apresentador anunciava os gols da rodada para uma sala vazia quando ele notou a porta do quarto entreaberta. Ao se aproximar, não foi notado. Mariana lançava um sorriso que ele não via há tempos enquanto Roberto, que não joga futebol, a apertava nos braços. Niltão empurrou a porta que fez um estrondo, Mariana deu um grito, Roberto arregalou os olhos:
- Niltão, hoje não teve jogo? – perguntou o amigo.
- Meu amor, não te esperava tão cedo – argumentou Mariana.
No jogo seguinte ele não apareceu, os amigos já sabiam de toda a história e tentavam fazer contato sem sucesso.
O prédio escolhido foi onde ele trabalhava. Na calçada, a multidão se aglomerava, os bombeiros se posicionavam e a imprensa tinha acabado de chegar. Da janela do quinto andar, Niltão observava toda a comoção que havia provocado. Outros funcionários pediam para ele recuar, Mariana chegou a ser avisada e estava a caminho.
Projetou-se para o vazio com os braços abertos. Girou no ar e caiu, como alguns imaginavam, sobre a rede aberta pelos bombeiros. O povo aplaudiu, Niltão levantou-se esperando algum elogio que não recebeu.
No dia seguinte, ouviu as súplicas de Mariana e disse que tentaria imaginar-se novamente ao seu lado, mas sem maiores promessas. Ao desligar o telefone, voltou a observar o jornal em suas mãos. Na primeira página, uma enorme foto do seu corpo girando no ar, os braços abertos, as costas para o chão e a perna direita esticada para o céu. Uma pintura.
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